quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A Passagem Uivante - Parte 2/2


A primeira parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2013/11/a-passagem-uivante-parte-12.html

Fernando questionava-se como é que o pequeno estado podia ter aspirações tão megalómanas. Mantinham quase um décimo da população em serviço militar efectivo. Cerca de meio milhão de homens combatiam em duas frentes contra os dois estados vizinhos. Para quê, era a questão que poucos se atreviam a fazer em voz alta. E quando alguém ignorava essa regra informal, a policia do exército encarregava-se de resolver celeremente o caso.
Imobilizar veículo! – ordenou o comandante. – Artilharia fixa, 2300 metros às 11 horas.
Fernando travou a fundo, parando o tanque em poucos metros. A sua posição de condutor não lhe permitia ver o alvo.
Gui, dá-me uma munição explosiva! – pediu o atirador.
Ouviu-se o clique da abertura da culatra da arma e da munição a deslizar para o interior. A artilharia foi trancada logo de seguida.
Houve um impasse de alguns momentos enquanto o atirador tentava encontrar o seu alvo. A torre rodou lentamente.
Fez-se luz por via de um foguete de iluminação. Fernando sentiu-se pequeno, blindados pintados de verde sob um fundo de xisto e granito eram tão visíveis como ervilhas no meio do arroz. Ouviram-se vários disparos, incluindo o do seu próprio tanque, que o deixou meio surdo. A escuridão regressou um par de segundos depois.
Avançar! – comandou o tenente, cuja ordem se sobrepôs ao zumbido nos ouvidos.
A resposta do inimigo não se fez esperar sob a forma de alguns disparos que aterraram nas proximidades. Pareciam estar a apontar ao acaso, já que não caiam sequer perto do estreito caminho percorrido pelo batalhão.
O primeiro batalhão entrou em contacto com o inimigo – informou o rádio uns minutos depois.
A ponte está guardada por blindados! – reportou um dos tenentes num tom nervoso.
Não pode evitar estremecer ao perceber que o seu batalhão acabara de entrar na batalha. O chão estremeceu com ele, aquando de uma explosão nas imediações. Os canhões responderam.
A segunda companhia está a ser flanqueada. Inimigo às 2 horas – berraram através do rádio, tentando sobrepor-se ao barulho infernal.
Dá-me uma perfurante! – pediu logo o atirador.
A terra tremeu e o chão faltou-lhes por baixo do tanque. A inclinação do tanque e a queda foi a última coisa de que se apercebeu antes de perder os sentidos.

***

Sentiu o sol aquecer-lhe a face. Deixou-se estar imóvel, saboreando aquele momento. Ao abrir os olhos, o sorriso desvaneceu-se quase instantaneamente. O que restava do seu batalhão estava cercado por soldados desconhecidos. A cabeça doía-lhe e o sangue empastava-lhe o cabelo. O olhar dos seus companheiros transparecia o que se havia passado.
Precisava de encontrar Roberto. Havia algo que precisava de lhe dizer. Escrutinou o pequeno grupo sem encontrar a face dele.
Outro grupo de prisioneiros era escoltado pelos austurianos. Os soldados caminhavam cabisbaixos e com um aspecto miserável em direcção aos restantes. O coração batia-lhe descompassado, pensando que Roberto poderia estar naquele grupo. Os estrangeiros começaram a espancar um dos soldados que se atrasara.
Qual o futuro de um soldado raso capturado? A solução mais benevolente e honrada era o fuzilamento. Tudo o resto era demasiado desumano e apenas um adiar do inevitável.
Sentiu os olhos a humedecer. Talvez o seu tanque tivesse escapado à emboscada. Ou poderia ter fugido a coberto da noite.
Voltou a observar cada um dos rostos, incluído os que estavam feridos. Não o encontrou entre eles. Alguns cadáveres estavam ao lado e, num impulso masoquista, tentou distinguir quem teriam sido os seus antigos donos.
Alguém lhe tocou no ombro. Virou-se. De gatas atrás de si estava um homem de cabelo encaracolado e olhos verdes. Ao reconhecê-lo, o que restava da sua esperança morreu. Era o condutor do blindado de Roberto.
Ele quis que ficasses com isso – disse, estendendo-lhe um envelope.
Obrigado – balbuciou sem saber o que dizer.
Não estava sequer selado. No interior encontrava-se um único pedaço de papel com um poema.

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal! ”

Tinha sido uma boa escolha, pois nesse momento já as lágrimas lhe corriam pela cara. Porque é que haveria ele de lhe deixar como legado um envelope com um poema proibido? Os antigos Portugal e Galiza tinham dado origem a três estados independentes. Qualquer referência ao passado e à união era proibida.

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena. ”

Tudo tinha valido a pena, mesmo que no fim nunca lhe tivesse dito. Nem precisava, Roberto sempre soubera.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu. ”

Levantou-se e fitou os soldados inimigos. Eles observaram-no um pouco nervosos. O vendaval uivou através do vale que era suposto a sua divisão conquistar. Largou o envelope e ele foi levado pelo vento. Os soldados colocaram os dedos nos gatilhos. O mundo havia-lhe retirado tudo.
Tudo, excepto a escolha do momento da sua morte.

 

FIM

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